FOTO DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO

Em meio a um novo pico de casos e mortes pela covid-19 no Brasil, ganharam força as vozes em defesa de um novo adiamento da realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), cujas provas estão marcadas para os domingos de 17 e 24 de janeiro. O Ministério da Educação (MEC) descartou adiar o exame, e, na terça-feira, uma decisão da Justiça Federal referendou a decisão, sob o argumento de que, além dos prejuízos financeiros, mudar a data das provas prejudicaria a formação acadêmica dos estudantes. Às vésperas da realização do Enem ―principal forma de acesso a universidades públicas e privadas no país―, os mais de 5,8 milhões de inscritos e as comunidades acadêmica e médica brasileiras aguardam sob tensão o desfecho deste imbróglio, que ganha novos capítulos a cada dia. Nesta quarta, a Justiça Federal do Amazonas suspendeu a realização do Enem no Estado, após a prefeitura de Manaus anunciar que não cederia as escolas municipais para a realização das provas. Já o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) enviou um ofício ao Governo federal pedindo a mudança da data.

Enquanto especialistas da área saúde temem que as aglomerações causadas pela aplicação das provas agravem a pandemia de coronavírus, educadores reiteram que ―independentemente do adiamento ou manutenção do Enem― os estudantes de baixa renda e oriundos de escolas públicas serão os mais prejudicados após um 2020 com escolas fechadas e oferta ensino a distância desigual. “O Enem precisa ser adiado, mas essa bandeira é insuficiente. É preciso também que o MEC coordene esforços junto à secretarias estaduais de educação e universidades para mexer em calendários e início de ano letivo, e assegurar que os alunos vão ter carga horária aula que devem ter”, explica Priscila Cruz, presidenta da organização.

A equação “não é simples” e envolve, por exemplo, garantir que os alunos prejudicados pelo fechamento das escolas vão ter a reposição completa das horas de aula perdidas, segundo explica Cruz. Para ela, o adiamento do Enem já deveria ter sido “o começo de uma série de ações que o MEC já deveria ter coordenado”. A educadora defende a aplicação de exames no meio do ano de 2021, o que, segundo ela, retiraria dos alunos “a pressão de terem que fazer a prova agora e dando o tempo para recuperar a aprendizagem perdida.” Contudo, ela vê o MEC, comandado pelo pastor Milton Ribeiro, como incapaz do ponto de vista gerencial de coordenar essas mudanças.

No pedido, rejeitado pela Justiça Federal na terça, a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF), em conjunto com a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Educafro, entre outras entidades, criticavam a ausência de “clareza sobre as providências adotadas para evitar-se a contaminação dos participantes da prova, estudantes e funcionários que a aplicarão.” “O aumento da circulação do vírus nesta população pode ocasionar um aumento da transmissão nos grupos mais vulneráveis”, complementava o Conass naquele mesmo dia, em ofício enviado ao MEC. A Defensoria já informou que vai recorrer da decisão.

Para a juíza Marisa Cucio, da 12.ª Vara Cível Federal de São Paulo, as medidas de segurança adotadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) Inep, órgão do MEC responsável pela aplicação da prova, “são adequadas para viabilizar a realização das provas nas datas previstas, sem deixar de confiar na responsabilidade do cuidado individual de cada participante e nas autoridades sanitárias locais que definirão a necessidade de restrição de circulação de pessoas, caso necessário”, escreveu ela em sua decisão. Entre as medidas estão o uso obrigatório de máscaras durante toda a realização da prova; a contração de 200.000 salas para a aplicação da prova, em contraste com as 140.000 de 2019; locais de provas ocupados com cerca de 50% da capacidade; e a higienização das salas de aula antes e depois dos exames. Pessoas que estiverem com covid-19 ou sintomas de outras doenças infectocontagiosas podem solicitar a reaplicação das provas, prevista para 23 e 4 de fevereiro.

A enfermeira epidemiologista Ethel Maciel prevê que as pessoas com sintomas leves de covid-19 ou que foram contaminadas e estão na fase pré-sintomática, além dos casos assintomáticos, não deixarão de fazer a prova. “Você coloca todas essas pessoas juntas no meio da aceleração da doença, com Estados beirando o colapso, e temos a possibilidade de piorar a situação.” Ela lembra que a nova cepa do vírus surgida no Reino Unido —e que já chegou ao Brasil— é mais contagiante sobretudo na faixa etária dos 20 anos.

Aumento da desigualdade

O Governo Jair Bolsonaro pretendia aplicar o Enem em novembro do ano passado, mas a estudantes e especialistas foram unânimes em pedir pelo adiamento. Na ocasião, a pressão surtiu efeito. Agora, a questão é “mais delicada”, segundo explica Valesca Mota, pedagoga que atua no cursinho pré-vestibular comunitário da Rede Ubuntu Educação Popular. “Conversando com os alunos a gente percebe que alguns querem fazer mesmo estando inseguros, porque adiar o Enem significa também adiar as angústias e a ansiedade”, explica. Ela se diz a favor do adiamento uma vez que “a questão sanitária é mais preocupante e envolve a vida dos candidatos e seus familiares.” Lembra que, além das aglomerações nos locais de provas, muitos estudantes demoram muitas horas e utilizam vários transportes coletivos no deslocamento para fazer o Enem. “Mas se adiasse até maio, que era das opções, não mudaria muita coisa. As pessoas não estariam vacinadas e não haveria reposição das aulas perdidas”, pondera.

Assim, Mota coincide com Cruz, do Todos Pela Educação, ao cobrar um adiamento que viesse seguido de “um plano concreto” e em “conjunto com as escolas e o ensino médio”, de modo a garantir um retorno seguro às aulas e a reposição das horas de aula perdidas. Mantido o Enem, ela acredita que não há tempo hábil para o poder público tomar medidas acadêmicas para amenizar a desigualdade entre jovens da rede pública e privada de ensino. Resta, agora, garantir uma “rede de apoio” para “trabalhar o emocional e o psicológico desses jovens.” E também cobrar para que o poder público garanta os protocolos de segurança durante a realização da prova.

Na última semana, ocorreram os vestibulares de duas das maiores instituições de ensino superior públicas do Brasil. A Unicamp e a USP aplicaram as primeiras provas das primeiras fases dos processos seletivos para as universidades paulistas para mais de 200.000 candidatos. Além disso, lembra Cruz, universidades privadas estão aplicando seus próprios vestibulares. “Qualquer posicionamento deve ser geral e valer para a Fuvest [que aplica o vestibular da USP], para a Unicamp e todos os vestibulares que estão acontecendo em janeiro”, argumenta a presidenta do Todos pela Educação. “Adiando apenas o Enem, estudantes vão ficar sem ano letivo enquanto outros começam as aulas. Pode gerar ainda mais desigualdade entre jovens brasileiros”, acrescenta.

Apesar das medidas para evitar o contágio anunciados pela Fuvest, houve filas e aglomeração nos arredores dos locais de provas. A abstenção neste ano foi de 13,2%, enquanto no início do ano passado foi de 7,9%. “Uma coisa é ir votar e ficar minutos numa fila. Outra coisa é ficar cinco horas num espaço. As escolas [que servirão de locais dos exames] não possuem condições semelhantes, algumas não tem fluxo de ar adequado”, argumenta a enfermeira infectologista. “Estamos vendo uma segunda mais agressiva que a primeira onda, mas não estamos vendo nenhuma medida. E promovendo o erro.”

Fonte: El País

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